“Coletar e plantar sementes na quantidade de estrelas do céu”. A frase poética de Claudomiro Almeida Cortes, um dos fundadores da Associação Cerrado de Pé, da Chapada dos Veadeiros (GO), transmite o propósito de vida que o coletor de sementes vem multiplicando no bioma mais ameaçado pelo desmatamento no Brasil. Por meio da técnica de “muvuca de sementes” – que surgiu da língua quicongo, de origem bantu africana, em que “muvúka” significa “aglomeração ruidosa de pessoas” – um grupo de pessoas, unidas por um mesmo ideal, mistura sementes variadas para recuperar a vegetação nativa.
O chefe de cooperação União Europeia-Brasil, Robert Steinlechner, com um dos coletores de sementes da Associação Cerrado de Pé. Uma calcareadeira foi usada para dispersar as sementes em 15 ha do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (GO).
A associação reúne 159 famílias da região da Chapada dos Veadeiros e recebe apoio do Projeto Cerrado Resiliente (Ceres), executado pelo Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), por meio do Fundo PPP-ECOS, em parceria com o WWF-Brasil, WWF-Holanda e WWF-Paraguai, com recurso da União Europeia.
O trabalho de coleta de sementes promove inclusão social e gera renda à população local, além de contribuir com a restauração ambiental. Em 2023, foram coletadas 27 toneladas de sementes e, para 2024, “a meta é chegar a 30 toneladas”, afirma Claudomiro. As sementes são variadas: de árvores nativas mas, também, de capim (gramíneas), arbustos e ervas, estas últimas características da fitofisionomia cerratense.
O Cerrado
O Cerrado ocupa um quarto do território nacional, dos quais 50% encontram-se desmatados. Floresta invertida, com árvores de raízes profundas, armazena grandes estoques de carbono e capta água das chuvas que é armazenada nos lençóis freáticos. A água que brota do Cerrado chega à Amazônia, por meio de cerca de 3 mil nascentes, demonstrando a importância da conexão entre os biomas.
Apesar de toda essa relevância, o bioma vem sendo destruído num ritmo acelerado pela agropecuária intensiva, sobretudo na região do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). Em 2023, o Cerrado perdeu 7.828 km2 de vegetação nativa, o que corresponde a um aumento de 43% em relação ao ano de 2022.
Segundo ecólogos, a restauração de áreas degradadas no Cerrado exige, além da reposição de árvores, o plantio de capim nativo. “Pelo estudo do ecossistema e a observação da paisagem, constatamos a importância de plantar herbáceas e gramíneas nativas que ajudam a reter a água no solo e a formar a caixa d’água do Brasil, junto com árvores e arbustos”, explica a coordenadora do Programa Cerrado e Caatinga do ISPN, Isabel Figueiredo.
Visita de Campo
A frase de Claudomiro, que abre o texto, deu o tom da visita de campo que o ISPN e o WWF promoveram para mostrar de perto à União Europeia (UE) as ações apoiadas pelo Projeto Ceres. Entre 23 e 24 de novembro de 2023, o chefe de cooperação UE-Brasil, Robert Steinlechner, e a assessora de cooperação, Ana Gutierrez, puderam acompanhar a semeadura direta de espécies nativas em 15 hectares de área degradada (ex-pasto) dentro do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros e ouvir relatos e experiências da comunidade envolvida com o trabalho ambiental. “Façam esse sonho perene, engajando as gerações futuras. Quero voltar daqui a 30 anos e ver o resultado”, disse Ana Gutierrez.
Na ocasião da visita, foi utilizada uma calcareadeira adaptada para espalhar as sementes no solo do antigo pasto de braquiária – espécie exótica de capim usada para alimentar o gado.
O ecólogo Alexandre Sampaio, do ICMBio, um dos fundadores do projeto pioneiro Restaura Cerrado, diz que “ainda estamos engatinhando” sobre a restauração do bioma. “Desenvolvemos esse método com o envolvimento das pessoas locais, que conhecem a dinâmica da natureza. Ao longo dos anos, montamos o processo, que está em construção. Aos poucos, a função da água vai sendo restabelecida”, conta ele.
O primeiro esforço de restauração foi em 2016, em parceria com a Associação Cerrado de Pé. Segundo ele, o desafio é enorme: restaurar 1,3 milhão de hectares só em Unidades de Conservação.*
Muvuca de sementes e muvuca de gente: o trabalho de restauração é coletivo e colaborativo.
Renda e conservação
Para a presidente da Rede de Sementes do Cerrado, Camila Motta, além de mostrar como é feita a muvuca de sementes, a visita teve por objetivo apresentar também o potencial de geração de renda da atividade. “Aproveitamos a oportunidade para destacar iniciativas que contribuem não apenas para a conservação ambiental, mas também para desenvolvimento social e econômico das comunidades envolvidas”, destacou.
A Rede de Sementes do Cerrado comercializa 84 espécies nativas do Cerrado que podem ser utilizadas para a restauração ecológica, por meio da técnica da semeadura direta, ou para paisagismo e pesquisa. As sementes são coletadas pelos coletores da Associação Cerrado de Pé, que é composta por pequenos produtores rurais, assentados e quilombolas da região da Chapada dos Veadeiros.
A visita de campo foi organizada pelo ISPN e o WWF-Brasil, em parceria com a Rede de Sementes do Cerrado e a Cerrado de Pé. Também estavam presentes representantes do Serviço Florestal Brasileiro, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, do ICMBio e da chefia do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, além de Seline Meijer, do WWF-Holanda.
Seline Meijer do WWF-Holanda experimenta geléia de cagaita produzida na Cooperfrutos do Paraíso.
Coletores de sementes: relatos
“É um trabalho que trouxe muitas conquistas, não só para a minha família, mas também para outras famílias da nossa comunidade Kalunga. Construí a casa própria, comprei fogão, armário e outras mobílias e, hoje, estou morando nela. É uma grande honra para mim estar fazendo esse trabalho”, diz Emiverton de Souza Fernandes, coletor de sementes e morador do povoado Kalunga do Vão do Moleque, no município de Cavalcante (GO). Emiverton era conhecido como Ni da Motosserra, antes de começar a trabalhar com sementes e conhecer o valor de conservar e recuperar a natureza.
Emiverton, conhecido como Ni (à direita), melhorou de vida com o trabalho de coleta de sementes.
A instrutora de coleta Adelice Faria Silva, integrante da comunidade quilombola Ema, conta que conseguiu mudar a vida e o pensamento com a nova atividade: “Hoje eu falo que tenho uma vitória, através da coleta de sementes nativas. Sou mãe de cinco filhos que criei praticamente sozinha, na roça. Depois que meus filhos cresceram e já estavam criados, consegui entrar na Associação Cerrado de Pé. Trabalhei, ralei, fui pro meio do Cerrado, colhi sementes e hoje eu tenho a minha casa. Quando entro dentro de casa, olho para cima e digo a mim mesma: eu consegui. E consegui isso tudo com sementes, algo que eu jamais imaginava. Hoje eu tenho outro pensamento: não pode estragar o Cerrado, mas antigamente eu não tinha essa ideia”, lembra ela.
Cooperativa do Paraíso: outra iniciativa de conservação e renda
No dia anterior à muvuca de sementes, a comitiva esteve na sede da Cooperfrutos do Paraíso, uma cooperativa com 200 famílias de oito municípios da região da Chapada dos Veadeiros, que fornece frutas, verduras e legumes para escolas locais, por meio dos programas federais de aquisição de alimentos (PAA e PNAE).
“A agroindústria facilita a vida das merendeiras, fornecendo os alimentos já higienizados, cortados e até pré-cozidos para as escolas. Como é que duas merendeiras vão fazer comida, todos os dias, para mais de 200 crianças?”, conta a nutricionista responsável pela alimentação escolar de Alto Paraíso de Goiás, Claudia Lulkin.
“Te felicito pela coragem e resiliência”, declara o chefe de cooperação UE-Brasil, Robert Steinlechner, a Cláudia. A Cooperfrutos do Paraíso pretende ser referência para outras 48 comunidades da Chapada que conservam os recursos naturais e têm neles os seus meios de vida. Em dois anos, a cooperativa comercializou R$1,2 milhão em alimentos, cultivados em sistema de agrofloresta ou quintal produtivo sem uso de venenos.
A região da Chapada dos Veadeiros tem sido ameaçada pelo uso intensivo de agrotóxicos nas monoculturas de soja e milho, que acabam contaminando os lençóis freáticos e as águas. Os agricultores, que produzem de forma ecológica e alimentam a comunidade com comida saudável, mantêm o Cerrado de pé e conseguem, assim, renda e qualidade de vida para viver no campo.
A cooperativa, que recebeu apoio do Projeto Ceres, por meio do Fundo PPP-ECOS do ISPN, para começar as atividades em uma escola local, agora está com o projeto pronto para a construção de uma pequena agroindústria.
O Projeto Ceres é executado pelo ISPN, WWF-Brasil, WWF-Holanda e WWF-Paraguai, com recurso da União Europeia. Apoia 34 projetos até junho deste ano. Entre os resultados preliminares, estão: 90 organizações apoiadas; 333 comunidades fortalecidas; 8.274 famílias apoiadas; 125 capacitações realizadas; 14 hectares com manejo ecológico do fogo; 344 hectares com manejo agroecológico; 23 hectares em restauração e 64.068 hectares de manejo sustentável, além de 11 agroindústrias fortalecidas.
O presidente da Cooperfrutos do Paraíso, Sinomar Carvalho, mostra à comitiva a planta baixa do projeto da agroindústria no município de Alto Paraíso (GO).
*Década da Restauração
Em 2021, a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou a década da Restauração dos Ecossistemas, para prevenir, interromper e reverter a degradação dos ecossistemas em todos os continentes e oceanos. O objetivo final é ajudar a erradicar a pobreza, combater as mudanças climáticas e prevenir uma extinção em massa.
No Brasil, o Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg), lançado em 2017 pelo governo federal, tem a meta de recuperar 12 milhões de hectares até 2030, sobretudo em Áreas de Proteção Permanente (APPs) e Reservas Legais, mas também em áreas degradadas com baixa aptidão agrícola. A meta brasileira faz parte do Desafio de Bonn que pretende restaurar 350 milhões de hectares no mundo até 2030.