Guardiões e Guardiãs do Cerrado apontam para a invisibilidade de suas pautas na 30ª Conferência das Partes sobre Mudanças Climáticas, enquanto governos estaduais vão à conferência defender o agronegócio
Há décadas, pesquisadoras/es, educadoras/es, comunidades e organizações da sociedade civil atuam, de forma articulada, para divulgar informações científicas e saberes populares sobre a importância ecológica do Cerrado. Apesar do consenso científico — que se expressa no título de “Berço das Águas” —, esse reconhecimento ainda não se refletiu em legislações e políticas públicas capazes de garantir maior proteção ao bioma e sua sociobiodiversidade.
Ano a ano, dados sobre desmatamentos, incêndios e contaminação por agrotóxicos ampliam o alerta sobre a devastação do Cerrado. De acordo com o MapBiomas¹, nos últimos 40 anos, o Cerrado perdeu quase 30% de sua cobertura total. Em 2024, foi o bioma mais desmatado do Brasil, pelo segundo ano consecutivo, sendo a região do MATOPIBA² a mais afetada. Estes dados levantam preocupações sobre segurança hídrica e sobre as condições de manutenção dos ecossistemas, tanto regionalmente quanto em todo o território nacional.
Entretanto, os gritos em defesa do Cerrado ainda não foram incluídos oficialmente nos debates da 30ª Conferência das Parte sobre Mudanças Climáticas, que será realizada no próximo mês de novembro, em Belém (PA). Até o momento, as organizações e comunidades do Cerrado terão a chance de fazer apenas breves apresentações e exposições em espaços paralelos, como a Cúpula dos Povos e a COP do Povo, e aproveitar brechas mínimas no evento, relacionando a defesa do bioma à proteção das águas e da Amazônia.
Para a pesquisadora Valéria Pereira Santos, o encontro se pauta em debates climáticos ainda fortemente orientados por demandas do Norte Global, que, no que tange ao Brasil, ainda se centram no paradigma da Amazônia como “pulmão do mundo”. “A defesa da Amazônia é fundamental, mas este paradigma tem um efeito absurdo do ponto de vista ambiental, social e econômico para outras regiões. Ele vem servindo a um marketing orientado para a concentração de recursos em ações que aliviem a imagem dos países ricos, mas que não contribuem para a resolução dos problemas nos territórios”, afirma Valéria.
Mesmo em relação à Amazônia, a agenda da COP30 não foge ao que vem sendo apontado como “falsas soluções verdes” por ambientalistas, organizações populares e populações atingidas pela crise climática. Na savana mais biodiversa do planeta, ainda tratada pelo Estado brasileiro como zona de sacrifício e entregue à expansão do agronegócio e da mineração, os efeitos do aquecimento global se somam às consequências diretas da devastação, comprometendo os meios de sobrevivência de uma vasta sociobiodiversidade.
Crise hídrica no Berço das Águas
Chuvas irregulares, veranicos prolongados, início tardio das chuvas. Agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais já observam e sofrem diversas mudanças relacionadas ao clima, no Cerrado. O agricultor e técnico em agroecologia Realino Lopes, que acompanha plantios comunitários na região sudeste de Goiás, relata que, no último ano, duas comunidades perderam lavouras de arroz inteiras devido à insuficiência de chuvas.
“Em Santa Cruz, na comunidade Vala do Rio do Peixe, toda a lavoura de arroz foi perdida porque não choveu depois que as sementes foram colocadas na terra. Em Orizona, região tradicional do arroz, não teve chuva para encher o cacho”, relata o agricultor. Ainda esse ano, comunidades quilombolas Kalunga, de Cavalcante (GO), denunciaram que a “Chuva do Caju”, que marcava anualmente o início do período de coleta de frutas nativas, não caiu em seu território.
O professor Murilo Souza, pesquisador da Universidade Estadual de Goiás, confirma que interpretações como essas são compatíveis com uma série de estudos realizados por instituições de pesquisa, como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). “Em alguns locais, o início das chuvas tem atrasado três e quatro semanas, o período seco se alongado e a precipitação média tem se reduzido de 10% a 15%. O rebaixamento dos lençóis freáticos também já foi constatado”, afirma.
Agricultores familiares, povos e populações tradicionais têm sido, em grande medida, os responsáveis pela conservação da disponibilidade hídrica do Cerrado. Por outro lado, são também os primeiros afetados pela escassez de água, experimentando a redução de safras e o trabalho com baixa previsibilidade. “Além de uma ameaça à disponibilidade de alimentos para a população em geral, este processo gera risco de insegurança alimentar para as próprias famílias agricultoras”, atesta Murilo.
Estudos preveem que a temperatura global siga aumentando e a precipitação anual na região continue diminuindo. A previsão é de que, somando-se às consequências do desmatamento e da irrigação em larga escala, o número de conflitos por terra e pelo uso da água nos territórios do Cerrado se ampliem a cada ano.
Povos insurgentes pela vida no Cerrado
Em meados dos anos 2010, ganha força o processo de insurgência e autodeterminação dos povos tradicionais do Cerrado contra a violência da grilagem e do agronegócio. Após décadas encurralados pelas monoculturas e adoecidos pela contaminação dos agrotóxicos, a defesa do Cerrado emerge, nas vozes das comunidades, a partir dos territórios tradicionais.
Para Valéria Santos, a própria Constituição Federal foi o primeiro suporte para este levante, ao reconhecer os povos indígenas, quilombolas e as comunidades tradicionais como sujeitos de direitos. “De 1989 para cá, vários movimentos foram surgindo, a exemplo do movimento das quebradeiras de coco de babaçu. Apesar de não haver um instrumento específico para a regularização das terras tradicionais, a Constituição permitiu que o Estado brasileiro criasse leis e programas para o reconhecimento dos PCTs”, analisa Valéria.
Dona Marli Borges, liderança quilombola da Comunidade do Guerreiro, no município de Parnarama (MA), conta que hoje, após retomar seu território, a comunidade trabalha para recuperar o Cerrado devastado por grileiros e enfrenta a contaminação por agrotóxicos causada pelos grandes monocultivos na região. “É uma luta muito desequilibrada. Quem luta contra os agrotóxicos somos nós, pobres, moradores de comunidade, que plantamos e colhemos nosso alimento e as frutas do Cerrado. Não temos ajuda dos governos do município e do estado. Parece que nossa vida não importa pra eles. Eles dizem que o agronegócio é desenvolvimento mas, pra nós, o agronegócio é a morte”, desabafa Marli.
Um trabalho exemplar de vigilância popular das águas foi realizado por comunidades tradicionais do Oeste da Bahia, entre 2023 e 2024. Com parceria de educadores, pesquisadores e organizações locais, as comunidades formularam um estudo inédito de mapeamento das “águas mortas”3 na região, identificando 3.050 cursos secos, entre córregos, riachos, nascentes e cabeceiras de rios, nas bacias dos rios Corrente e Carinhanha. O mapeamento também identificou a posição de grandes reservatórios (piscinões) e pivôs centrais de irrigação do agronegócio.
De acordo com Isidora Santos, educadora e agente da Pastoral do Meio Ambiente, que colaborou com a condução da pesquisa, o estudo tem sido um instrumento importante de denúncia e conscientização, porém, o mapeamento, por si só, não é capaz de frear a morte das águas. Ela denuncia que a instalação de novos pivôs, piscinões e o desmatamento seguem a todo vapor na região.
“O povo da cidade ainda não acordou. As comunidades que estão enfrentando pistoleiros para defender as águas estão dando a vida pelo Cerrado. Infelizmente, parece que as pessoas só vão acordar quando acontecer algo mais drástico. Se matar o Cerrado, mata o Brasil inteiro — e precisamos trabalhar juntos para impedir isso”, alerta Isidora.
O AGRO em defesa de si mesmo na COP30
Na última quinta-feira, 9 de outubro, o Consórcio Interestadual de Desenvolvimento do Brasil Central — composto por representantes dos governos do Distrito Federal e dos estados de Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia e Tocantins — reuniu-se em Brasília (DF) para a assinatura de um documento denominado “Carta do Cerrado”, dirigido à presidência da COP30. O evento contou com a participação de Alice Amorim Vogas, diretora de programação da Conferência.
A presença ativa e os discursos de governadores, vices, secretários e secretárias de meio ambiente evidenciam como o agronegócio está fortemente instalado no poder executivo desses estados. Suas falas exemplificam bem a maneira como os estudos ambientais sobre o bioma vêm sendo apropriados e utilizados como suporte para ações desenvolvimentistas em defesa dos produtores de commodities.
O Cerrado foi repetidamente apresentado como área economicamente estratégica, devido à sua riqueza hídrica e à sua extensão territorial. A participação do bioma na agenda climática global aparece como caminho para atrair investimentos. Entre as intenções do consórcio para a COP30, estão listadas a criação do chamado ‘Fundo Cerrado no Brasil’, a ampliação do financiamento climático voltado ao bioma e o desenvolvimento de mercados de carbono e créditos de biodiversidade específicos para o Cerrado.
Representantes da Campanha Cerrado, que acompanharam a reunião, relatam que a carta elaborada pelo consórcio não defende o bioma, mas sim os interesses econômicos do agronegócio. “Essa carta tem como principal ponto uma suposta conciliação entre a expansão da fronteira agrícola no Cerrado e a sustentabilidade, o que, para nós, é algo inviável. Eles dizem que o discurso ambiental da COP30 representa um empecilho ao desenvolvimento do país”, analisa Iarinma de Morais, secretária da Campanha.
Nas narrativas da COP Cerrados, o agronegócio — setor que mais lucra com a devastação do bioma e principal responsável pelas emissões de gases de efeito estufa no país — busca se posicionar como novo operador das soluções do “capitalismo verde”, ao mesmo tempo em que se apresenta como vítima do aquecimento global e da crise hídrica.
“Esse discurso é absolutamente incompatível com a realidade que se observa no Cerrado. O agronegócio é a principal causa local da crise hídrica e da dizimação de povos e da biodiversidade do Cerrado. É impossível conviver com o seu avanço”, contesta Iarinma.
Entre as pautas defendidas pela Campanha Cerrado, estão a criação de normas específicas para a regularização fundiária dos territórios dos Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) — medida fundamental para protegê-los do avanço do agronegócio e garantir a permanência dos verdadeiros guardiões e guardiãs do Cerrado em seus territórios. Além disso, a Campanha reivindica a aprovação da PEC 504 no Congresso Nacional, que inclui o Cerrado e a Caatinga entre os biomas considerados patrimônio nacional, com o objetivo de garantir mais leis e aportes de recursos para sua conservação.
Eco-Genocídio no contexto da clise climática
O Atlas dos Conflitos no Campo Brasileiro4, lançado este ano pela Comissão Pastoral da Terra, aponta que, entre 1985 e 2023, foram registrados mais de 17 mil conflitos por terra e água nos Cerrados brasileiros. Esses conflitos, em sua ampla maioria, têm como vítimas indivíduos e comunidades que integram povos tradicionais e trabalhadores rurais em luta por terra e território.
Em 2022, o Estado brasileiro e um conjunto amplo de empresas e instituições foram condenados na Sessão Especial sobre o Ecocídio do Cerrado e o Genocídio de seus Povos, do Tribunal Permanente dos Povos (TPP), tribunal de opinião internacional destinado ao julgamento de crimes contra povos e minorias, especialmente em casos nos quais os sistemas jurídicos estatais falham.
No processo de análise e apresentação das denúncias dos 15 casos que foram a julgamento, a Assessoria de Acusação, composta por equipe multidisciplinar, formulou a interpretação de que há em curso um processo de eco-genocídio do Cerrado e seus povos. Segundo esta formulação, o Ecocídio do Cerrado implica, intrinsecamente, no genocídio desses povos, porque inviabiliza as bases materiais de sua reprodução social e de sua existência5.
A denúncia sobre o eco-genocídio reforça o olhar sobre a dimensão social da catástrofe climática, apontando a catástrofe humanitária subjacente a ela. O contínuo entre bioma, território, modo de vida e comunidade e sua interdependência — traduzido na formulação de corpo-território, utilizada hoje pelas mulheres do Cerrado para denunciar o racismo ambiental presente nas políticas do Estado brasileiro — é expressado com profundidade por Dona Marli, quando fala sobre o Cerrado:
“O nosso planeta é um corpo humano. Pra sobreviver precisa de todas as partes: do pulmão, do coração e do cérebro. Por que estamos vivendo neste calor insuportável, com chuva demais num local e chuva de menos em outro? É por causa do desmatamento no Cerrado, também. Se matar o Cerrado, mata o território brasileiro todo. Isso que o pessoal do mundo todo precisa entender”, lamenta Dona Marli.
Os movimentos em luta pela reforma agrária apostam no repovoamento de áreas degradadas pelo agronegócio, mostrando que, com práticas concretas, outro modelo produtivo — adequado às necessidades das populações e do planeta — é possível. Experiências como o plano “Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis”, do MST, propõem a produção de alimentos aliada à proteção das águas do Cerrado, com a meta de plantar 100 milhões de árvores no Brasil até 2030.
A agricultora e tecnóloga em agroecologia Alcione da Cruz Ferreira é uma das responsáveis pela implementação do plano em Goiás. “Falam em neutralizar carbono e em compensação ambiental, mas continuam incentivando o desmatamento, a grilagem, a monocultura e a exploração. No território do Acampamento Dom Tomás Balduino, este ano já fizemos um viveiro para produção de mudas de árvores nativas do Cerrado aqui em Goiás, estamos coletando sementes e fizemos formações em recuperação de nascentes. Essas ações vêm contribuindo para a Reforma Agrária Popular, que assume essa tarefa de proteger a terra e cuidar da vida. Nosso modo de produção é a agroecologia, dentro do ecossistema, vivendo do ecossistema, resgatando nossa identidade enquanto povo do Cerrado.”
Referências:
1. MapBiomas: Link ;
2. Atualmente, a supressão de vegetação nativa ocorre de forma mais acelerada nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, nova zona de expansão da fronteira agrícola conhecida como MATOPIBA;
3. A Morte das Águas no Oeste da Bahia (CPT Bahia, 2024) – Link ;
4. Atlas dos Conflitos no Campo Brasileiro (CPT, 2025) Link ;
5. Dossiê Terra e Território no Cerrado (CPT, 2024): Link ;